No caminho para Canaã
(Ge 11.31)
A caravana se arrastava pela margem do
rio Eufrates, aproveitando o frescor provocado pela umidade das suas águas que
corriam em direção contrária ao deslocamento do grupo humano. Eram muitos os
grupos que usavam aquele percurso, pois se tratava do caminho natural e mais
confiável que unia a alta e a baixa Mesopotâmia, os grandes centros das
civilizações.
Ao longo da jornada, os participantes
daquele deslocamento trocavam idéias, informações, não apenas com outras
caravanas com as quais cruzavam pelo caminho, mas contavam histórias e aventuras
dentro do próprio grupo. E quantas eram as conversas ao redor das fogueiras nas
noites geladas às margens do Eufrates.
O pai de Abrão e o irmão Hanor estavam
interessados em negócios naquelas noites ao redor das fogueiras na margem do
rio. Os homens falavam a respeito das condições das rotas comerciais e das
incertezas sobre o futuro com a presença dos gutti pela região
central da planície. Havia boatos que alguns grupos estavam fazendo incursões
ao norte. No meio destas conversas noturnas, alguém mencionou o nome de uma
cidade: Harã.
Tera já havia ouvido falar desta
cidade. Ela era um ponto importante e estratégico nas rotas que iam da
Mesopotâmia para o Egito e conectava o mundo das grandes civilizações com
locais ainda exóticos, muito ricos e férteis ao norte e a oeste. Diziam que
embarcações cruzavam mares e podiam chegar aos extremos da Terra.
A riqueza de Harã era narrada pelos
aventureiros como um sinal da dádiva e benção do próprio Sin, o deus Lua,
protetor da cidade. E esta menção ao deus igualmente cultuado em sua cidade de
origem que levou Tera a se aproximar do grupo e despretensiosamente pedir mais
informações sobre o local.
Harã e toda a região alta da
Mesopotâmia eram dominadas pelos reis amoritas, semitas de alguma forma
aparentados de Tera e sua família. A língua que falavam evocava a antiga
linguagem de sua família. Antes da peregrinação para as regiões mais baixas da
Mesopotâmia, quando buscaram mais oportunidades de negócios com seus rebanhos,
as tribos semitas tinham uma língua comum, o proto-semita. Harã pareceu um
local atrativo para Tera, que via um traço divino sendo pintado em seus destinos.
Abrão pode perceber no interesse de seu
pai pela conversa, que em algum lugar de sua alma nascia um desejo de deixar o
caminho natural de cruzar o deserto via Damasco para chegar à Canaã por uma
subida até a cidade das caravanas. Ele sabia que esta repentina vontade de seu
pai poderia significar uma mudança nos planos de viagem. Foi ao longo dos dias
de peregrinação que ficou cada vez mais claro que o patriarca da família havia
mudado seus planos e seguiria com a caravana até Harã, com a desculpa de estar
procurando bons negócios em relação ao rebanho que acompanhava a sua família.
Aos poucos, Abrão foi percebendo que
todos em sua família iam entrando em acordo com seu pai. A jornada por aquelas
terras áridas dava aos urbanizados parentes de Abrão a sensação de desejarem
novamente uma atmosfera mais organizada e estruturada, com as facilidades que
as cidades mesopotâmicas podiam proporcionar. Era exatamente aquele estilo de
vida que sempre atraiu as pessoas para cidades como Ur, Larsa e Uruk, na baixa
Mesopotâmia.
Mas Abrão era diferente. Ele gostava da
vida mais livre. Sempre que podia, ia até onde estavam os rebanhos de sua
família conversar com os pastores, interar-se das notícias que corriam por
entre os moradores nômades das estepes. Sua vida
não estava ligada à cidade, como as vidas de seu irmão Hará e Naor.
Ele era um homem livre, que gostava do
sossego do campo, do barulho das ovelhas e do latido dos cães de guarda. Ele se
inspirava em suas meditações à noite, ao olhar para o céu estrelado, imaginando
o que poderia sustentar tamanha grandeza e vastidão sem que tudo se tornasse um caos. O estilo nômade dos
antepassados ainda vivia dentro de Abrão.
Para o solitário Abrão, as cidades eram
antros de perdição, causa primária no desbotar da moral e ética. Não teria sido
à toa que o infame Ninrode foi o fundador de várias cidades na região. Foi a
própria idéia de fundar uma cidade que teria levado os homens a construírem uma
torre em Babel, desafiando os deuses. Foi a descendência do desterrado Caim
que, na aurora da história humana, iniciou as primeiras aglomerações,
contrariando a ordem da divindade de se espalhar
pela terra. Sim, Abrão tinha motivos de sobra para eleger a vida pacata e
tranqüila do campo em vez da conturbada e maliciosa vida urbana.
Mas agora os seus sonhos de uma vida
ligada aos rebanhos e à vida livre dos nômades acabam de ser eclipsados pela
nova direção que seu pai estava tomando.
A caravana finalmente, depois de quase
duas semanas, chega à Mari. Os suntuosos palácios e muros altos demonstram que
esta cidade era um ponto importante no caminho entre os mundos das grandes
civilizações. A ostentação de Mari, capital de um reino que estava em franca
ascensão, se devia ao comércio que faziam os cofres locais transbordarem de
ouro, prata e outros artigos preciosos. A vida econômica abastada refletia no
intenso trabalho dos escribas, que passavam ao longo do dia redigindo
contratos, notas de compra e venda, e fazendo cópias das leis locais referentes
ao comércio. As caravanas chegavam diariamente trazendo seus produtos oriundos
dos pontos mais distantes conhecidos pelo homem. A confusão de línguas faladas
nas ruas de Mari acabava por assustar o mais desavisado. Notório, entretanto,
eram dois templos que se erguiam no mar de casas e lojas instaladas ao longo
das ruelas. Aqui também se cultuavam os deuses locais, e a força das divindades
era expressa naquelas imponentes obras. Uma alta torre se erguia de um dos
templos, marcando o local exato das peregrinações e ofertas. O palácio real era
exuberante, e tinha em sua arquitetura mais de 300 cômodos! O arquivo real de
Mari contava com milhares de tabuinhas escritas em cuneiforme. Este arquivo era
mormente formado por documentos de natureza administrativa e textos judiciais,
além de uma significativa porção de cartas de Estado.
Tudo isto se devia ao fato da cidade
controlar as rotas de comércio entre os montes Zagros (atual Irã), Mesopotâmia
e estendendo-se até a Anatólia (atual Turquia) e a fenícia Ugarit, na costa
leste do Mediterrâneo. O comércio principal era de produtos comestíveis como
azeitonas e cereais. Outros artigos importantes vendidos eram peças de
cerâmica, porcelana, pedras e madeira.
Foi neste ambiente que Abrão ouviu
histórias mais detalhadas sobre Canaã, as atividades econômicas e sociais que
lá estavam ocorrendo. Ouviu falar da migração de amorreus e outros clãs semitas
em direção ao vale do Jordão. Soube que Canaã estava ligada ao mundo
mesopotâmico não apenas por laços comerciais, mas tribos nômades se deslocavam
para a região, especialmente em busca de pastagens para seus rebanhos. Ficou ciente,
ainda, da situação de vassalagem de alguns reis locais em relação às poderosas
cidades do centro da Mesopotâmia, e a constante tensão entre estes dois mundos.
A vida de Canaã se tornava mais concreta para o migrante Abrão. As mesmas
informações acabaram também por chegar aos ouvidos de seu pai, o que o levou a
ficar mais firme em sua resolução de passar por Harã antes de prosseguir viagem
para Canaã. “Seria melhor”, segundo seu pensamento, “esperar um momento mais
oportuno para descer até aquelas terras.”
A caravana com a qual seguiam viagem
permaneceu em Mari por alguns dias. Parte do grupo iria seguir em direção ao
deserto, atravessando mais de 250 quilômetros entre as areias e pedras do
escaldante deserto até chegar ao oásis de Tadmor, outra região que prosperou ao
longo dos séculos com a chegada e partida de caravanas apinhadas de produtos
dos mais longínquos cantos da terra. Dali seguiriam até Damasco e, por fim,
alcançariam Canaã após vários dias de viagem pelo escaldante deserto
sírio. Outra parte da caravana partiria de Mari
e prosseguiria em direção noroeste, ao longo do rio Eufrates até atingir a alta
Mesopotâmia, região de Harã.
Após alguns dias dedicados aos negócios,
Tera e sua família tomam o rumo noroeste, acompanhando a caravana que logo mais
iria se dividir ao chegar em Terqa, uma cidade com muros circuncêntricos que atingiam mais de seis metros de altura. Terqa era o local que marcava o início de um caminho alternativo para Canaã, mais curto, que atravessava o deserto sírio. Abrão segue seu pai, tentando se refazer da contrariedade que
sentia ao ver a parte que seguia para o oeste pegar o caminho que levava à
Canaã.
O trajeto até Harã custaria ao grupo
cerca de 10 dias de caminhada margeando o rio Eufrates, onde conviveriam com a
inconstância da segurança daquelas estradas. Havia boatos que alguns
saqueadores conhecidos como “apiru” estavam soltos pela região, e que aquele
contingente não exitaria em atacar uma caravana desprotegida, especialmente se
ela estivesse vindo de Mari carregada de mercadorias.
Após uma semana margeando o rio, sempre
sob a tensão de um ataque de algum bando dos “apiru”, finalmente os comerciantes
chegam ao encontro do Eufrates com um de seus importantes afluentes, o rio
Balikh. Neste encontro de águas ficava a cidade de Tuttul, que demarcava para
as caravanas a necessidade de uma mudança na rota. A partir dali, eles
precisariam deixar as margens do barrento Eufrates e seguirem em direção norte,
acompanhando o afluente. Seriam mais três ou quatro dias até a chegada em Harã.
O caminho já era mais seguro, pois o enorme fluxo de pessoas e caravanas
traziam ao local um ar de maior liberdade. O vale do rio Balikh era considerado
fértil não apenas pelas suas terras adjacentes ao rio, mas também pelas
culturas, histórias e tradições dos povos que ali habitavam. Aglomerações
humanas em suas margens denunciavam a antiguidade da fixação de tribos e clãs naquela
região. Havia uma mescla das camadas culturais ali sobrepostas a tal ponto de
não se saber mais quem foram na verdade os primeiros habitantes do local. As
deidades igualmente se proliferavam numa mescla de religião e misticismo.
Tuttul era conhecida como o local da adoração a Dagon, reverenciado pelos
habitantes locais como aquele que lhes tinha presenteado o arado, símbolo da
agricultura. Mas quanto mais se aprofundavam pelas terras banhadas pelo Balikh,
mais sentiam a presença de Sin, o deus Lua, por tanto tempo reverenciado por
Tera.
Para a tranqüilidade de Tera e sua
família, toda a alta Mesopotâmia era agora controlada pelos amorreus, parentes
de sangue deles. A língua oficial falada na região era aparentada daquela que
Tera herdara de seus antepassados antes de aprender o idioma sumério no sul.
Isto fez com que a empolgação do grupo fosse aumentando conforme as
distâncias eram vencidas.
Entretanto, aquela vida de deslocamentos
acabou por incrustar em Abrão a convicção de que Harã não seria seu porto final
de ancoragem. Algo estava lhe impulsionando a um dia deixar para trás Harã e
buscar a terra pela qual originariamente tinham deixado Ur.
O sobrinho de Abrão, Ló, parecia mais
confiante em um deslocamento, num futuro próximo, para o objetivo final que
era Canaã. Ló estava sempre na companhia de seu tio, Abraão, ouvindo suas
histórias junto das fogueiras e aprendendo a reverenciar o irmão de seu pai
falecido. Abrão sempre tinha histórias para contar, narrando-as de forma eloqüente
e confiante ao jovem Ló, que atentamente ouvia sobre um deus desconhecido e
criador de todas as coisas, o qual era o objetivo maior da busca do tio.
A entrada em Harã não poderia ser mais
triunfante para a família daqueles semitas acostumados com o estilo das grandes
metrópoles como Ur. Harã era outro centro importante no caminho dos
comerciantes. Nela se encontravam as produções vindas dos montes do Cáucaso ao
norte, a barreira geográfica final para os povos das grandes civilizações, a
fronteira última do mundo conhecido, para além dos quais se estendia uma terra
de sombras e nevoeiros. Do ocidente eram trazidas mercadorias confeccionadas
nas ilhas do Grande Mar e sua região costeira, além de madeira do valioso cedro
libanês. Roupas e tapetes vinham do oriente, de lugares tão distantes que uma
caravana podia levar meses para chegar à Harã. A cidade era conhecida pelos
nativos através do nome Harranu, que no idioma semita predominante significava
literalmente “Caminho, Estrada”, dada a importância que o local tinha para as
rotas comerciais entre o Mar Mediterrâneo e a Mesopotâmia.
Toda aquela agitação presenciada pelos
recém-chegados cidadãos de Ur trouxe-lhes a lembrança de sua terra de origem.
Mais impressionados ficaram Tera e Naor ao perceberem no meio da paisagem o templo
de Sin, o deus da Lua, patrono da família. Numa cultura onde a religião
desempenhava um papel importante, e onde os locais eram governados por
uma divindade específica, o fato de Sin ser adorado em Harã serviu para os
uritas como um sinal de que, na sua peregrinação, eles tinham encontrado o local
ideal para se fixarem.
O estabelecimento da família na
localidade foi bem vista pelas autoridades locais. Os rebanhos e a riqueza que
trouxeram seriam um incentivo e incremento na economia local. A boa recepção
causou um impacto positivo sobre Tera, que resolveu estabelecer-se na região
definitivamente. Os seus rebanhos ficariam do lado de fora de Harã, enquanto
seus negócios iriam prosperar na própria cidade. As condições de vida
estabelecidas em Ur há muito tempo atrás agora estavam sendo postas nesta nova
terra, Harã.
Enquanto isto, Abrão lançava seu olhar para os lados de Canaã, esperando que um dia retornassem a jornada interrompida...
Muito legal o texto, mas sempre achei que Abrão fosse o fundador dos "Apiru" que depois seriam chamados de Hebreus, o que você acha?
ResponderExcluirGostei muito do texto, aprendi bastante e tirei varias dúvidas.
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