Apresentação do História e Arqueologia Bíblica

07 fevereiro 2014

UM HOMEM CHAMADO ABRÃO: NO CAMINHO PARA CANAÃ

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Capítulo 1


Capítulo 2
Um homem chamado Abrão 


No caminho para Canaã

Terá tomou seu filho Abrão, seu neto Ló, filho de Harã, e sua nora Sarai, mulher de seu filho Abrão, e juntos partiram de Ur dos caldeus para Canaã. Mas, ao chegarem a Harã, estabeleceram-se ali.

(Ge 11.31)

A caravana se arrastava pela margem do rio Eufrates, aproveitando o frescor provocado pela umidade das suas águas que corriam em direção contrária ao deslocamento do grupo humano. Eram muitos os grupos que usavam aquele percurso, pois se tratava do caminho natural e mais confiável que unia a alta e a baixa Mesopotâmia, os grandes centros das civilizações.
Ao longo da jornada, os participantes daquele deslocamento trocavam idéias, informações, não apenas com outras caravanas com as quais cruzavam pelo caminho, mas contavam histórias e aventuras dentro do próprio grupo. E quantas eram as conversas ao redor das fogueiras nas noites geladas às margens do Eufrates.
Abrão teve a oportunidade de ouvir aventureiros, comerciantes, crianças, tantas histórias e sonhos. Quantas tragédias e murmurações, sorrisos francos e choros contidos. O estilo livre, solto com que aqueles nômades do deserto viviam a vida atraia e cativava a atenção do então já urbanizado Abrão. Aquela vida despreocupada com as correrias da cidade, a necessidade de lutar em meio a uma sociedade cada vez mais complexamente estruturada, os rituais, os modelos pré-definidos, a tradição. Abrão já vislumbrava a vida dos seus antepassados, vida de cabanas e nomadismo pelas estepes. Seu pai havia sido um destes errantes das estepes, mas o acúmulo das riquezas acabou levando Tera para dentro dos muros de Ur, para nunca mais sair de lá. Seus rebanhos e criações ficaram a cargo de administradores, enquanto ele investia seus lucros em outra atividade urbana rentável naqueles dias.
O pai de Abrão e o irmão Hanor estavam interessados em negócios naquelas noites ao redor das fogueiras na margem do rio. Os homens falavam a respeito das condições das rotas comerciais e das incertezas sobre o futuro com a presença dos gutti pela região central da planície. Havia boatos que alguns grupos estavam fazendo incursões ao norte. No meio destas conversas noturnas, alguém mencionou o nome de uma cidade: Harã.
Tera já havia ouvido falar desta cidade. Ela era um ponto importante e estratégico nas rotas que iam da Mesopotâmia para o Egito e conectava o mundo das grandes civilizações com locais ainda exóticos, muito ricos e férteis ao norte e a oeste. Diziam que embarcações cruzavam mares e podiam chegar aos extremos da Terra. 
A riqueza de Harã era narrada pelos aventureiros como um sinal da dádiva e benção do próprio Sin, o deus Lua, protetor da cidade. E esta menção ao deus igualmente cultuado em sua cidade de origem que levou Tera a se aproximar do grupo e despretensiosamente pedir mais informações sobre o local.
Harã e toda a região alta da Mesopotâmia eram dominadas pelos reis amoritas, semitas de alguma forma aparentados de Tera e sua família. A língua que falavam evocava a antiga linguagem de sua família. Antes da peregrinação para as regiões mais baixas da Mesopotâmia, quando buscaram mais oportunidades de negócios com seus rebanhos, as tribos semitas tinham uma língua comum, o proto-semita. Harã pareceu um local atrativo para Tera, que via um traço divino sendo pintado em seus destinos.
Abrão pode perceber no interesse de seu pai pela conversa, que em algum lugar de sua alma nascia um desejo de deixar o caminho natural de cruzar o deserto via Damasco para chegar à Canaã por uma subida até a cidade das caravanas. Ele sabia que esta repentina vontade de seu pai poderia significar uma mudança nos planos de viagem. Foi ao longo dos dias de peregrinação que ficou cada vez mais claro que o patriarca da família havia mudado seus planos e seguiria com a caravana até Harã, com a desculpa de estar procurando bons negócios em relação ao rebanho que acompanhava a sua família.
Aos poucos, Abrão foi percebendo que todos em sua família iam entrando em acordo com seu pai. A jornada por aquelas terras áridas dava aos urbanizados parentes de Abrão a sensação de desejarem novamente uma atmosfera mais organizada e estruturada, com as facilidades que as cidades mesopotâmicas podiam proporcionar. Era exatamente aquele estilo de vida que sempre atraiu as pessoas para cidades como Ur, Larsa e Uruk, na baixa Mesopotâmia.
Mas Abrão era diferente. Ele gostava da vida mais livre. Sempre que podia, ia até onde estavam os rebanhos de sua família conversar com os pastores, interar-se das notícias que corriam por entre os moradores nômades das estepes. Sua vida não estava ligada à cidade, como as vidas de seu irmão Hará e Naor.
Ele era um homem livre, que gostava do sossego do campo, do barulho das ovelhas e do latido dos cães de guarda. Ele se inspirava em suas meditações à noite, ao olhar para o céu estrelado, imaginando o que poderia sustentar tamanha grandeza e vastidão sem que tudo se tornasse um caos. O estilo nômade dos antepassados ainda vivia dentro de Abrão.
Para o solitário Abrão, as cidades eram antros de perdição, causa primária no desbotar da moral e ética. Não teria sido à toa que o infame Ninrode foi o fundador de várias cidades na região. Foi a própria idéia de fundar uma cidade que teria levado os homens a construírem uma torre em Babel, desafiando os deuses. Foi a descendência do desterrado Caim que, na aurora da história humana, iniciou as primeiras aglomerações, contrariando a ordem da divindade de se espalhar pela terra. Sim, Abrão tinha motivos de sobra para eleger a vida pacata e tranqüila do campo em vez da conturbada e maliciosa vida urbana.
Mas agora os seus sonhos de uma vida ligada aos rebanhos e à vida livre dos nômades acabam de ser eclipsados pela nova direção que seu pai estava tomando.
A caravana finalmente, depois de quase duas semanas, chega à Mari. Os suntuosos palácios e muros altos demonstram que esta cidade era um ponto importante no caminho entre os mundos das grandes civilizações. A ostentação de Mari, capital de um reino que estava em franca ascensão, se devia ao comércio que faziam os cofres locais transbordarem de ouro, prata e outros artigos preciosos. A vida econômica abastada refletia no intenso trabalho dos escribas, que passavam ao longo do dia redigindo contratos, notas de compra e venda, e fazendo cópias das leis locais referentes ao comércio. As caravanas chegavam diariamente trazendo seus produtos oriundos dos pontos mais distantes conhecidos pelo homem. A confusão de línguas faladas nas ruas de Mari acabava por assustar o mais desavisado. Notório, entretanto, eram dois templos que se erguiam no mar de casas e lojas instaladas ao longo das ruelas. Aqui também se cultuavam os deuses locais, e a força das divindades era expressa naquelas imponentes obras. Uma alta torre se erguia de um dos templos, marcando o local exato das peregrinações e ofertas. O palácio real era exuberante, e tinha em sua arquitetura mais de 300 cômodos! O arquivo real de Mari contava com milhares de tabuinhas escritas em cuneiforme. Este arquivo era mormente formado por documentos de natureza administrativa e textos judiciais, além de uma significativa porção de cartas de Estado.



Tudo isto se devia ao fato da cidade controlar as rotas de comércio entre os montes Zagros (atual Irã), Mesopotâmia e estendendo-se até a Anatólia (atual Turquia) e a fenícia Ugarit, na costa leste do Mediterrâneo. O comércio principal era de produtos comestíveis como azeitonas e cereais. Outros artigos importantes vendidos eram peças de cerâmica, porcelana, pedras e madeira.
Foi neste ambiente que Abrão ouviu histórias mais detalhadas sobre Canaã, as atividades econômicas e sociais que lá estavam ocorrendo. Ouviu falar da migração de amorreus e outros clãs semitas em direção ao vale do Jordão. Soube que Canaã estava ligada ao mundo mesopotâmico não apenas por laços comerciais, mas tribos nômades se deslocavam para a região, especialmente em busca de pastagens para seus rebanhos. Ficou ciente, ainda, da situação de vassalagem de alguns reis locais em relação às poderosas cidades do centro da Mesopotâmia, e a constante tensão entre estes dois mundos. A vida de Canaã se tornava mais concreta para o migrante Abrão. As mesmas informações acabaram também por chegar aos ouvidos de seu pai, o que o levou a ficar mais firme em sua resolução de passar por Harã antes de prosseguir viagem para Canaã. “Seria melhor”, segundo seu pensamento, “esperar um momento mais oportuno para descer até aquelas terras.”
A caravana com a qual seguiam viagem permaneceu em Mari por alguns dias. Parte do grupo iria seguir em direção ao deserto, atravessando mais de 250 quilômetros entre as areias e pedras do escaldante deserto até chegar ao oásis de Tadmor, outra região que prosperou ao longo dos séculos com a chegada e partida de caravanas apinhadas de produtos dos mais longínquos cantos da terra. Dali seguiriam até Damasco e, por fim, alcançariam Canaã após vários dias de viagem pelo escaldante deserto sírio. Outra parte da caravana partiria de Mari e prosseguiria em direção noroeste, ao longo do rio Eufrates até atingir a alta Mesopotâmia, região de Harã.
Após alguns dias dedicados aos negócios, Tera e sua família tomam o rumo noroeste, acompanhando a caravana que logo mais iria se dividir ao chegar em Terqa, uma cidade com muros circuncêntricos que atingiam mais de seis metros de altura. Terqa era o local que marcava o início de um caminho alternativo para Canaã, mais curto, que atravessava o deserto sírio. Abrão segue seu pai, tentando se refazer da contrariedade que sentia ao ver a parte que seguia para o oeste pegar o caminho que levava à Canaã. 
O trajeto até Harã custaria ao grupo cerca de 10 dias de caminhada margeando o rio Eufrates, onde conviveriam com a inconstância da segurança daquelas estradas. Havia boatos que alguns saqueadores conhecidos como “apiru” estavam soltos pela região, e que aquele contingente não exitaria em atacar uma caravana desprotegida, especialmente se ela estivesse vindo de Mari carregada de mercadorias.
Após uma semana margeando o rio, sempre sob a tensão de um ataque de algum bando dos “apiru”, finalmente os comerciantes chegam ao encontro do Eufrates com um de seus importantes afluentes, o rio Balikh. Neste encontro de águas ficava a cidade de Tuttul, que demarcava para as caravanas a necessidade de uma mudança na rota. A partir dali, eles precisariam deixar as margens do barrento Eufrates e seguirem em direção norte, acompanhando o afluente. Seriam mais três ou quatro dias até a chegada em Harã. O caminho já era mais seguro, pois o enorme fluxo de pessoas e caravanas traziam ao local um ar de maior liberdade. O vale do rio Balikh era considerado fértil não apenas pelas suas terras adjacentes ao rio, mas também pelas culturas, histórias e tradições dos povos que ali habitavam. Aglomerações humanas em suas margens denunciavam a antiguidade da fixação de tribos e clãs naquela região. Havia uma mescla das camadas culturais ali sobrepostas a tal ponto de não se saber mais quem foram na verdade os primeiros habitantes do local. As deidades igualmente se proliferavam numa mescla de religião e misticismo. Tuttul era conhecida como o local da adoração a Dagon, reverenciado pelos habitantes locais como aquele que lhes tinha presenteado o arado, símbolo da agricultura. Mas quanto mais se aprofundavam pelas terras banhadas pelo Balikh, mais sentiam a presença de Sin, o deus Lua, por tanto tempo reverenciado por Tera.
Para a tranqüilidade de Tera e sua família, toda a alta Mesopotâmia era agora controlada pelos amorreus, parentes de sangue deles. A língua oficial falada na região era aparentada daquela que Tera herdara de seus antepassados antes de aprender o idioma sumério no sul. Isto fez com que a  empolgação do grupo fosse aumentando conforme as distâncias eram vencidas.
Entretanto, aquela vida de deslocamentos acabou por incrustar em Abrão a convicção de que Harã não seria seu porto final de ancoragem. Algo estava lhe impulsionando a um dia deixar para trás Harã e buscar a terra pela qual originariamente tinham deixado Ur.
O sobrinho de Abrão, Ló, parecia mais confiante em um deslocamento, num futuro próximo, para o objetivo final  que era Canaã. Ló estava sempre na companhia de seu tio, Abraão, ouvindo suas histórias junto das fogueiras e aprendendo a reverenciar o irmão de seu pai falecido. Abrão sempre tinha histórias para contar, narrando-as de forma eloqüente e confiante ao jovem Ló, que atentamente ouvia sobre um deus desconhecido e criador de todas as coisas, o qual era o objetivo maior da busca do tio.
A entrada em Harã não poderia ser mais triunfante para a família daqueles semitas acostumados com o estilo das grandes metrópoles como Ur. Harã era outro centro importante no caminho dos comerciantes. Nela se encontravam as produções vindas dos montes do Cáucaso ao norte, a barreira geográfica final para os povos das grandes civilizações, a fronteira última do mundo conhecido, para além dos quais se estendia uma terra de sombras e nevoeiros. Do ocidente eram trazidas mercadorias confeccionadas nas ilhas do Grande Mar e sua região costeira, além de madeira do valioso cedro libanês. Roupas e tapetes vinham do oriente, de lugares tão distantes que uma caravana podia levar meses para chegar à Harã. A cidade era conhecida pelos nativos através do nome Harranu, que no idioma semita predominante significava literalmente “Caminho, Estrada”, dada a importância que o local tinha para as rotas comerciais entre o Mar Mediterrâneo e a Mesopotâmia.
Toda aquela agitação presenciada pelos recém-chegados cidadãos de Ur trouxe-lhes a lembrança de sua terra de origem. Mais impressionados ficaram Tera e Naor ao perceberem no meio da paisagem o templo de Sin, o deus da Lua, patrono da família. Numa cultura onde a religião desempenhava um papel importante,  e onde os locais eram governados por uma divindade específica, o fato de Sin ser adorado em Harã serviu para os uritas como um sinal de que, na sua peregrinação, eles tinham encontrado o local ideal para se fixarem.
O estabelecimento da família na localidade foi bem vista pelas autoridades locais. Os rebanhos e a riqueza que trouxeram seriam um incentivo e incremento na economia local. A boa recepção causou um impacto positivo sobre Tera, que resolveu estabelecer-se na região definitivamente. Os seus rebanhos ficariam do lado de fora de Harã, enquanto seus negócios iriam prosperar na própria cidade. As condições de vida estabelecidas em Ur há muito tempo atrás agora estavam sendo postas nesta nova terra, Harã.

Enquanto isto, Abrão lançava seu olhar para os lados de Canaã, esperando que um dia retornassem a jornada interrompida...


2 comentários:

  1. Muito legal o texto, mas sempre achei que Abrão fosse o fundador dos "Apiru" que depois seriam chamados de Hebreus, o que você acha?

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  2. Gostei muito do texto, aprendi bastante e tirei varias dúvidas.

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