Apresentação do História e Arqueologia Bíblica

17 janeiro 2014

GÊNESIS À LUZ DOS MESOPOTÂMICOS

,
Uma das sete tábuas, em cuneiforme 
do Enuma Elish, o poema da criação do mundo
A discussão a respeito dos relatos contidos nos primeiros capítulos de Gênesis e sua dependência de fontes literárias da Mesopotâmia não é algo novo. 

O grande impulso nesta área foi dado com a descoberta do poema mítico da Criação conhecido como Enuma Elish em 1849. Rapidamente foram feitas algumas análises e veiculou-se a possibilidade do texto ter sido de alguma forma a base para a composição da narrativa da Criação em Gênesis. 

Nossa intenção aqui não é discutir esta possível dependência, ou traçar qual teria a primazia. Pretendemos partir dos pontos de similaridade e mostrar uma relação entre ambos. 

Começamos com a questão das tábuas. Enuma Elish foi encontrado com sua história dividida em 7 tábuas, assim como os dias da criação em Gênesis, são igualmente 7. Mas as coincidências não param por aqui. A primeira narra o nascimento do "universo". Em sua seqüência, a guerra travada entre os primeiros deuses são uma força criadora, como no relato seguinte dos "dias da criação". Na sexta tábua, encontramos a

narrativa sobre a criação do homem através da mistura de terra e sangue de um deus. Em Gênesis, é neste sexto dia que Deus (Elohim) cria o ser humano, formando-o da terra e soprando o fôlego divino em suas narinas. Assim como no livro de Gênesis, os deuses de Enuma Elish acabam por descansar na narrativa da sétima tábua.

 Cópia? Coincidências? O fato é que sabemos que o conto babilônio não é a versão original. Enûma Eliš possui várias cópias na Babilônia e Assíria. A versão da biblioteca de Assurbanipal data do século VII a.C. A composição do texto, provavelmente, remonta à Idade do Bronze, nos tempos de Hamurabi ou talvez o início da Era Cassita (por volta dos séculos XVIII-XVI a.C.). O texto "original" provavelmente é muito mais antigo, datando da época dos sumérios, a primeira civilização. Mas de qual data? Ninguém sabe ao certo!

Seja como for, parece provável que o editor de Gênesis tenha se valido de fontes orais e escritas na composição dos primeiros capítulos. 

Outro ponto é a versão desmistificada do livro bíblico. Analisando o panteão da mesopotâmia podemos reparar muitas familiaridades entre as tradições. 

O primeiro conceito que destacamos aparece em Gênesis 1.1. O que chamamos atualmente de Universo, os antigos mesopotâmicos conheciam como AN.KI, ou seja, AN significa "Céu" e KI, "Terra". Para eles tudo que existia no "universo" podia ser expresso com a palavra AN.KI (Céus e Terra). Isto provavelmente encontra eco no conceito de Gênesis 1.1, onde diz: No princípio criou Deus (Elohim) os céus e a terra (AN.KI). 

AN.KI era tudo, mas estavam interligados entre si e em meio ao caos inicial ou abismo profundo (representado pela deusa Nammu). Esta união acaba gerando EN.LIL, o "senhor (EN) do ar (LIL)", que é o deus dos ares, tempestades, etc. 

Estes elementos aparecem no verso 2 do capítulo 1 de Gênesis. Temos um caos, uma união entre os elementos, abismo, caos, trevas e um vento (ar) soprando sobre as águas.

O que podemos ver até aqui, é que a narrativa mesopotâmica acabou por divinizar os elementos iniciais da formação do Universo e posteriormente do mundo. E isto não será uma exclusividade dos mesopotâmicos!

Andando um pouco mais nesta relação, alguns afirmam que a expressão em Gênesis tehom (תהום) (abismo, profundezas) tem íntima ligação com a divindade Tiamat descrita em Enuma Elish. Foneticamente parecem haver indícios de uma relação entre os termos. Se assim for, outra vez temos a mitologização na narrativa suméria, que acabou por preservar sua forma original desmistificada no texto bíblico. Ainda existe a possibilidade do autor sagrado ter propositalmente associado a insuficiência dos poderes de Tehom (Tiamat) frente ao Criador Elohim.

Cena da luta entre Tiamat e o deus Marduk
narrada em Enuma Elish
Além disto, Tiamat quase sempre é descrita como uma serpente marinha ou um dragão. No Enuma Elish ela é descrita como tendo uma cauda (rabo), coxas, órgãos sexuais, abdômen, tórax, pescoço e cabeça, olhos, narinas, boca e lábios. E por dentro coração, artérias e sangue. Fica quase impossível não fazer uma associação com o misterioso Leviatã das narrativas bíblicas, que, segundo Isaías, teria sido submetido pelo SENHOR (Yavéh) nos primórdios:

Is 27:1 Naquele dia, o Senhor com sua espada severa, longa e forte, castigará o Leviatã, serpente veloz, o Leviatã, serpente tortuosa; matará no mar a serpente aquática.

Aliás, a recorrência deste ser mitológico e outros é notável no Antigo Testamento. Leviatã, Raab, Tanin, Abaddon e Beemoth sugerem uma ligação com esta história contada desde tempos obscurecidos pelo tempo. Não se pode excluir a possibilidade de a serpente de Gênesis 3 ser um eco desses seres que antecedem a nossa história humana, e que teriam travado uma luta feroz com o Criador por algum motivo agora desconhecido por nós. 

Gostaríamos, agora, de ressaltar outo aspecto. Os pontos luminosos no céu são chamados de "luminares no firmamento do céu" (1.14), o que segundo alguns especialistas denotam a intenção aberta do autor (editor) em não identificar as estrelas e planetas como algum tipo de divindade. Lembramos, por exemplo,  que Inanna era conhecida como a deusa que estava associada ao planeta Vênus, sendo a "deusa do amor e da guerra". Era a divindade do erotismo e da fertilidade, conhecida em outros lugares como Ishtar, Ísis, Astarte, Afrodite e em Canaã como Asterote e Anat. Por ser Vênus um planeta muito brilhante no céu, especialmente na aurora, ficou conhecido como a "Estrela da Manhã". Este é exatamente o nome usado para se referir ao orgulhoso rei da Babilônia no livro de Isaías. Esta palavra posteriormente será traduzida na Vulgata (versão latina da Bíblia) por Lúcifer (ou seja, "aquele que tem a luz"), e que na tradição cristã veio a ser associado com a figura de Satanás.

Como você caiu dos céus, ó estrela da manhã, filho da alvorada! Como foi atirado à terra, você, que derrubava as nações! (Is 14.12)

Para o texto de Gênesis (como todo o resto das Escrituras, e especialmente na literatura apocalíptica), os astros celestes estão associados aos anjos do céu. Estes são mensageiros a serviço de Deus (Yavéh, Elohim) e não constituem um corpo de divindades à parte como nas tradições dos panteões dos outros povos. Em outras palavras, os Anunnakis e Igigi que formam este corpo distinto (divindade de cunho inferior), para os autores bíblicos, são relegados a simples criaturas sob o comando de Elohim.

Ainda falando sobre os corpos celestes, não podemos deixar de mencionar os dois mais importantes do ponto de vista da Terra, o Sol e a Lua. Ambos tinham seus correspondentes também na mitologia mesopotâmica. 

Nanna era o deus da lua, mais tarde chamado de Sin (ou Sinnu). Utu era o deus do sol, depois chamado de Shamash. Estes eram  deuses muito populares na região da Mesopotâmia, especialmente Nanna (ou Sin para os semitas), que era o protetor da poderosa cidade de Ur. Este tipo de associação de cidades-estado com uma divindade era muito comum naquele mundo. O deus estava associado com o local, e cada pessoa que viesse de outra região precisava adorar ao deus daquela localidade. A força destas divindades parece ser tanta, que o autor (editor) de Gênesis sequer dignifica-se a usar as palavras Sol e Lua em sua narração da Criação, limitando-se a dizer apenas "luminares":

Deus fez os dois grandes luminares: o maior para governar o dia e o menor para governar a noite; fez também as estrelas. (Ge 1.16)

Saindo um pouco do panteão mesopotâmico, mas continuando dentro do mesmo círculo cultural, gostaríamos de introduzir o conceito de Me. Segundo The Oxford Companion to World Mythology ( Por David Leeming): 



"Em sumério e outras mitologias mesopotâmicas, ME (acadiano parsu) são as leis essenciais derivadas de uma ordem divina que são encontradas na Mãe primordial Namnu - a primeira deidade. Elas incluem os mais variados aspectos da vida humana como reinados, divindades, práticas sexuais, poder e destruição de cidades. Na mitologia suméria, ME é possuído por ENKI e então por Inanna, o que indica a uma certa troca no poder relativo ao status divinos... Alguns conjecturam uma possível conexão entre ME e o conceito egípcio MAAT e o DHARMA hindu-indiano. Esta relação pode ser estendida ainda para conceitos como o TAO chinês e o LOGOS grego." 

Dotados de grande importância na Mitologia Suméria, os Me representavam decretos universais de autoridade divina sabedoria. Eram invocações que engendravam as artes, as ciências, a civilização. De fato, alguns traduzem o termo me como civilização.
Os Me foram catalogados em Ekur por Enlil e entregues a Enki para serem guardados e, posteriormente, transmitidos ao mundo, começando por Eridu, cidade que representava o centro de adoração do supracitado Enki.
Após realizar a operação, Enki usa os Me em auxílio das cidades de UrMeluhha e Dilmun, organizando o mundo com os decretos sagrados. 

Neste sentido, ME poderia ser ligado ao conceito em João, que fala do LOGOS divino (1.1.). A Associação do LOGOS com a criação em Gênesis é amplamente aceita dentro dos círculos cristãos. O LOGOS está associado à ação divina de verbalizar os atos criacionistas em Gênesis (e disse Deus...). Podemos dizer então que ME é uma ordem criadora, que dá coesão e sentido ao universo. O paralelo com a figura do Messias é impressionantemente notável.

Conclusão: 

Parece-nos bastante óbvia a intenção do autor (editor) de Gênesis em evitar qualquer aproximação com a divinização efetuada pela mitologia mesopotâmica dos corpos celestes e elementos da criação. Não obstante, a semelhança com a estrutura destas crenças e de outros lugares (Grécia, Egito, China, etc.) parece apontar para uma narrativa inicial que sustenta um apoio em favor da historicidade dos fatos relatados, ou pelo menos de uma fonte primária comum. Esta fonte, aparentemente, sofreu mutações conforme as distâncias entre os povos iam aumentando, e conforme o tempo passava. 

O que teria vindo primeiro, o conto mitificado, ou uma narrativa sem associações míticas (no caso, o Gênesis)? Difícil responder, ainda mais se levando em conta a enorme distância não apenas cultural, mas temporal que estamos dos relatos. Podemos propor duas possibilidades:

1. A narrativa inicial transmitida oralmente não continha elementos mitológicos, mas o misticismo humano encarregou-se de acrescentar elementos novos à narrativa. O homem, em sua situação órfã, acaba por buscar uma ligação com o mundo espiritual, e com isto acrescenta suas "versões" e modificações. A mutação do conto de Enuma Elish pode dar apoio a esta hipótese, pois Marduk, o deus babilônico, não fazia parte da história anterior dos sumérios. 

2. O autor (editor) do texto hebreu acaba por se esforçar para retirar do texto sumério qualquer referência aos deuses pagãos do povo que o contou pela primeira vez (???). Ele teria levado os deuses e deusas a uma categoria de meros fenômenos naturais, ou elementos da própria natureza, mostrando assim a inferioridade deles em relação ao Deus (Elohim) Criador. 

Isto tudo nos leva a crer que foi com Abraão que os relatos de Gênesis 1 começam sua "peregrinação" junto com o seu clã, até chegarem aos ouvidos do autor (editor) de Gênesis séculos depois. A vida de Abraão em Ur dos Caldeus é sem dúvida a ligação com os relatos mais antigos sobre a criação e a versão atual que dispomos em Gênesis.

0 comentários to “GÊNESIS À LUZ DOS MESOPOTÂMICOS”

Postar um comentário

Faça seu comentário!