Uma das sete tábuas, em cuneiforme
do Enuma Elish, o poema da criação do mundo
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O grande impulso nesta área foi dado com a descoberta do poema mítico da Criação conhecido como Enuma Elish em 1849. Rapidamente foram feitas algumas análises e veiculou-se a possibilidade do texto ter sido de alguma forma a base para a composição da narrativa da Criação em Gênesis.
Nossa intenção aqui não é discutir esta possível dependência, ou traçar qual teria a primazia. Pretendemos partir dos pontos de similaridade e mostrar uma relação entre ambos.
Começamos com a questão das tábuas. Enuma Elish foi encontrado com sua história dividida em 7 tábuas, assim como os dias da criação em Gênesis, são igualmente 7. Mas as coincidências não param por aqui. A primeira narra o nascimento do "universo". Em sua seqüência, a guerra travada entre os primeiros deuses são uma força criadora, como no relato seguinte dos "dias da criação". Na sexta tábua, encontramos a
narrativa sobre a criação do homem através da mistura de terra e sangue de um deus. Em Gênesis, é neste sexto dia que Deus (Elohim) cria o ser humano, formando-o da terra e soprando o fôlego divino em suas narinas. Assim como no livro de Gênesis, os deuses de Enuma Elish acabam por descansar na narrativa da sétima tábua.
Cópia? Coincidências?
O fato é que sabemos que o conto babilônio não é a versão original. O Enûma Eliš possui várias cópias na
Babilônia e Assíria. A versão da biblioteca de Assurbanipal data do século VII a.C. A composição do texto, provavelmente, remonta à Idade do
Bronze, nos tempos de Hamurabi ou talvez o início da Era Cassita (por volta dos séculos XVIII-XVI a.C.). O
texto "original" provavelmente é muito mais antigo, datando da época
dos sumérios, a primeira civilização. Mas de qual data? Ninguém sabe ao certo!
Seja como for, parece provável que o editor de Gênesis tenha se valido de fontes orais e escritas na composição dos primeiros capítulos.
Outro ponto é a versão desmistificada do livro bíblico. Analisando o panteão da mesopotâmia podemos reparar muitas familiaridades entre as tradições.
O primeiro conceito que destacamos aparece em Gênesis 1.1. O que chamamos atualmente de Universo, os antigos mesopotâmicos conheciam como AN.KI, ou seja, AN significa "Céu" e KI, "Terra". Para eles tudo que existia no "universo" podia ser expresso com a palavra AN.KI (Céus e Terra). Isto provavelmente encontra eco no conceito de Gênesis 1.1, onde diz: No princípio criou Deus (Elohim) os céus e a terra (AN.KI).
AN.KI era tudo, mas estavam interligados entre si e em meio ao caos inicial ou abismo profundo (representado pela deusa Nammu). Esta união acaba gerando EN.LIL, o "senhor (EN) do ar (LIL)", que é o deus dos ares, tempestades, etc.
Estes elementos aparecem no verso 2 do capítulo 1 de Gênesis. Temos um caos, uma união entre os elementos, abismo, caos, trevas e um vento (ar) soprando sobre as águas.
O que podemos ver até aqui, é que a narrativa mesopotâmica acabou por divinizar os elementos iniciais da formação do Universo e posteriormente do mundo. E isto não será uma exclusividade dos mesopotâmicos!
Andando um pouco mais nesta relação, alguns afirmam que a expressão em Gênesis tehom (תהום) (abismo, profundezas) tem íntima ligação com a divindade Tiamat descrita em Enuma Elish. Foneticamente parecem haver indícios de uma relação entre os termos. Se assim for, outra vez temos a mitologização na narrativa suméria, que acabou por preservar sua forma original desmistificada no texto bíblico. Ainda existe a possibilidade do autor sagrado ter propositalmente associado a insuficiência dos poderes de Tehom (Tiamat) frente ao Criador Elohim.
Cena da luta entre Tiamat e o deus Marduk narrada em Enuma Elish |
Além disto, Tiamat quase sempre é
descrita como uma serpente marinha ou um dragão. No Enuma Elish ela
é descrita como tendo uma cauda (rabo), coxas, órgãos sexuais,
abdômen, tórax, pescoço e cabeça, olhos, narinas, boca e lábios. E por
dentro coração, artérias e sangue. Fica quase impossível não fazer uma
associação com o misterioso Leviatã das narrativas bíblicas, que,
segundo Isaías, teria sido submetido pelo SENHOR (Yavéh) nos primórdios:
Is 27:1 Naquele dia, o Senhor com
sua espada severa, longa e forte, castigará o Leviatã, serpente veloz, o
Leviatã, serpente tortuosa; matará no mar a serpente aquática.
Aliás, a recorrência deste ser mitológico e outros é notável no
Antigo Testamento. Leviatã, Raab, Tanin, Abaddon e Beemoth sugerem uma ligação com esta
história contada desde tempos obscurecidos pelo tempo. Não se pode excluir a
possibilidade de a serpente de Gênesis 3 ser um eco desses seres que antecedem
a nossa história humana, e que teriam travado uma luta feroz com o Criador por algum motivo agora
desconhecido por nós.
Gostaríamos, agora, de ressaltar outo aspecto. Os pontos luminosos no céu são chamados de "luminares
no firmamento do céu" (1.14), o que segundo alguns especialistas denotam a
intenção aberta do autor (editor) em não identificar as estrelas e planetas
como algum tipo de divindade. Lembramos, por exemplo, que Inanna era conhecida como a deusa
que estava associada ao planeta Vênus, sendo a "deusa do amor
e da guerra". Era a divindade do erotismo e da fertilidade, conhecida em
outros lugares como Ishtar, Ísis, Astarte, Afrodite e em Canaã como Asterote e Anat. Por
ser Vênus um planeta muito brilhante no céu, especialmente na aurora, ficou
conhecido como a "Estrela da Manhã". Este é exatamente o nome usado para se
referir ao orgulhoso rei da Babilônia no livro de Isaías. Esta palavra posteriormente será
traduzida na Vulgata (versão latina da Bíblia) por Lúcifer (ou seja, "aquele que tem a
luz"), e que na tradição cristã veio a ser associado com a figura de Satanás.
Como você caiu dos céus, ó estrela da manhã, filho da alvorada!
Como foi atirado à terra, você, que derrubava as nações! (Is 14.12)
Para o texto de Gênesis (como
todo o resto das Escrituras, e especialmente na literatura apocalíptica), os
astros celestes estão associados aos anjos do céu. Estes são mensageiros a
serviço de Deus (Yavéh, Elohim) e não constituem um corpo de divindades à parte como nas
tradições dos panteões dos outros povos. Em outras palavras, os Anunnakis e
Igigi que formam este corpo distinto (divindade de cunho inferior), para os autores bíblicos, são
relegados a simples criaturas sob o comando de Elohim.
Ainda falando sobre os corpos
celestes, não podemos deixar de mencionar os dois mais importantes do ponto de
vista da Terra, o Sol e a Lua. Ambos tinham seus correspondentes também na
mitologia mesopotâmica.
Nanna era o deus
da lua, mais tarde chamado de Sin (ou Sinnu). Utu era o deus do
sol, depois chamado de Shamash. Estes eram deuses muito populares na região da Mesopotâmia,
especialmente Nanna (ou Sin para os semitas), que era o protetor da poderosa
cidade de Ur. Este tipo de associação de cidades-estado com uma divindade era
muito comum naquele mundo. O deus estava associado com o
local, e cada pessoa que viesse de outra região precisava adorar ao deus daquela localidade.
A força destas divindades parece ser tanta, que o autor (editor) de Gênesis
sequer dignifica-se a usar as palavras Sol e Lua em sua narração da Criação,
limitando-se a dizer apenas "luminares":
Deus fez os dois grandes
luminares: o maior para governar o dia e o menor para governar a noite; fez
também as estrelas. (Ge 1.16)
Saindo um pouco do panteão mesopotâmico, mas continuando dentro do mesmo círculo cultural, gostaríamos de introduzir o conceito de Me. Segundo The Oxford Companion to World Mythology ( Por David Leeming):
Dotados de grande importância na Mitologia Suméria, os Me representavam decretos universais de autoridade divina sabedoria. Eram invocações que engendravam as artes, as ciências, a civilização. De fato, alguns traduzem o termo me como civilização.
Os Me foram catalogados em Ekur por Enlil e entregues a Enki para serem guardados e, posteriormente, transmitidos ao mundo, começando por Eridu, cidade que representava o centro de adoração do supracitado Enki.
Após realizar a operação, Enki usa os Me em auxílio das cidades de Ur, Meluhha e Dilmun, organizando o mundo com os decretos sagrados.
Neste sentido, ME poderia ser ligado ao conceito em João, que fala do LOGOS divino (1.1.). A Associação do LOGOS com a criação em Gênesis é amplamente aceita dentro dos círculos cristãos. O LOGOS está associado à ação divina de verbalizar os atos criacionistas em Gênesis (e disse Deus...). Podemos dizer então que ME é uma ordem criadora, que dá coesão e sentido ao universo. O paralelo com a figura do Messias é impressionantemente notável.
Parece-nos bastante óbvia a intenção
do autor (editor) de Gênesis em evitar qualquer aproximação com a divinização
efetuada pela mitologia mesopotâmica dos corpos celestes e elementos da
criação. Não obstante, a semelhança com a estrutura destas crenças e de outros
lugares (Grécia, Egito, China, etc.) parece apontar para uma narrativa inicial
que sustenta um apoio em favor da historicidade dos fatos relatados, ou pelo
menos de uma fonte primária comum. Esta fonte, aparentemente, sofreu mutações
conforme as distâncias entre os povos iam aumentando, e conforme o tempo
passava.
O que teria vindo primeiro, o
conto mitificado, ou uma narrativa sem associações míticas (no caso, o
Gênesis)? Difícil responder, ainda mais se levando em conta a enorme distância
não apenas cultural, mas temporal que estamos dos relatos. Podemos propor duas
possibilidades:
1. A narrativa inicial
transmitida oralmente não continha elementos mitológicos, mas o misticismo humano encarregou-se de acrescentar elementos novos à narrativa. O homem, em sua
situação órfã, acaba por buscar uma ligação com o mundo espiritual, e com isto
acrescenta suas "versões" e modificações. A mutação do conto de Enuma
Elish pode dar apoio a esta hipótese, pois Marduk, o deus
babilônico, não fazia parte da história anterior dos sumérios.
2. O autor (editor) do texto
hebreu acaba por se esforçar para retirar do texto sumério qualquer referência
aos deuses pagãos do povo que o contou pela primeira vez (???). Ele teria
levado os deuses e deusas a uma categoria de meros fenômenos naturais, ou
elementos da própria natureza, mostrando assim a inferioridade deles em relação
ao Deus (Elohim) Criador.
Isto tudo nos leva a crer que foi
com Abraão que os relatos de Gênesis 1 começam sua "peregrinação" junto
com o seu clã, até chegarem aos ouvidos do autor (editor) de Gênesis séculos depois.
A vida de Abraão em Ur dos Caldeus é sem dúvida a ligação com os relatos mais
antigos sobre a criação e a versão atual que dispomos em Gênesis.