Apresentação do História e Arqueologia Bíblica

07 janeiro 2014

UM HOMEM CHAMADO ABRÃO

,

Zigurate de Ur


Na cidade de Ur dos Caldeus
(Ge 11.26-29)


Mesopotâmia, séc. XXII a.C.


Era mais um dia como qualquer outro na agitada cidade de Ur. O sol quente que castigaria impiedosamente aquela planície por onde lodosamente corria o rio Eufrates, um verdadeiro oásis no meio da já árida paisagem, estava se levantando a leste. O céu azulado demonstrava que seria mais um período em que os habitantes locais teriam que se refugiar do calor à sombra de alguma palmeira ou mesmo no interior das casas. As caravanas de comerciantes chegavam arrastadamente aos portões da cidade, buscando refúgio depois de uma longa jornada até ali, cruzando desertos, montanhas e estradas às vezes perigosas. Um vento quente e abafado soprava desde o sul, oriundo da região arábica, trazendo consigo minúsculos grãos de areia e poeira do deserto. O fenômeno indicava a aproximação de uma tempestade de areia, comum para aquela época do ano.

Um grupo de crianças cruza a praça central, levados por seus aios para a escola, conhecida em sumério como e-dubba, ou “casa dos tabletes”. Nestes locais do conhecimento, membros de uma elite social eram preparados com rigor para futuramente ocuparem cargos importantes na sociedade. Serão eles os escribas monopolizadores das atividades econômicas e administrativas na máquina estatal. Eles administrarão Ur em nome do rei... mas isto só ocorrerá se as instabilidades que estão além dos muros da cidade permitirem.


As e-dubbas destas crianças ficavam em um “bairro” nobre, onde numa larga rua se enfileiravam  as casas dos nobres. As atividades cotidianas destes pequenos uritas englobavam o estudo da matemática, botânica, escrita, leis e especialmente idiomas locais e “internacionais”, matéria obrigatória naqueles tempos de incertezas sociais e políticas. Foi nestas escolas provavelmente que os filhos de Tera, o semita, teriam sido instruídos algum tempo antes.


Por enquanto, as crianças da nova geração passam ao lado de uma caravana que acabou de chegar à cidade, trazendo valiosas mercadorias vindas de lugares tão distantes quanto possam imaginar aqueles pupilos. Os comerciantes locais se alvoroçam pelo caminho, esperando começar o dia com bons negócios. Uma erupção de idiomas eclode pelas ruas, tantos que não se pode enumerar, reflexos de uma cidade cosmopolita como Ur. Os recém-chegados se esgueiram pelas estreitas ruas que levam para o mercado. São ruelas suficientemente retas com comerciantes aglomerados ao longo da rota, buscando espaço entre os possíveis compradores, que acabam dificultando o deslocamento da caravana. Um estranho, que pela primeira vez entrasse por este labirinto, perceberia a dificuldade de se localizar no meio das vielas. O ponto de referência e orientação mais importante era o grande Zigurate, erguido ao deus protetor da cidade.


As casas são de tijolos feitos a partir do barro retirado das margens do Eufrates, com uma cor amarronzada e pálida. Suas construções de estilo monótono acabam confundindo o mais desavisado. Elas não tem telhados obtusos, mas retos, com a capacidade de acumular a pouca e preciosa água que cai do céu eventualmente e, durante as noites, podem se transformar em dormitórios ou observatórios celestes.


A caravana que agora chegara a Ur, permaneceu acampada durante a noite em algum lugar fora dos muros da cidade, pois apesar de terem apressado o passo, não tiveram a sorte de chegarem antes dos portões se fecharam por motivos de segurança. Tempos difíceis aqueles quando, além das infinitas intrigas entre as cidades-estado de toda a planície dos rios Eufrates e Tigres, povos nômades vindos do deserto haviam desestabilizado algumas localidades ao norte, trazendo uma atmosfera de insegurança até os muros de Ur.


Quem eram os turbulentos nômades que assustavam os habitantes da baixa Mesopotâmia e donos das caravanas? Ninguém sabia ao certo. Eles provavelmente haviam descido dos montes Zagros, que ficam em direção ao nascente do sol, terra de bárbaros e animais. Pouco importava sua origem, eram desprezíveis e nojentos aos olhos dos cidadãos locais. Os habitantes da região os denominavam apenas por gutti.


Mas este tipo de deslocamento e instabilidade fazia parte da história daquela planície fértil. Nos tempos que estavam vivendo, os uritas sabiam que a desertificação das terras ao redor, e possivelmente das altas montanhas do oriente, faziam com que pessoas desesperadas se aventurassem por lugares desconhecidos em busca da própria sobrevivência, varrendo toda a região com hordas impiedosas.


Enredada neste sem-fim de especulações que percorriam as ruas e becos da cidade sobre as incertezas do amanhã, habitava uma próspera família de origem semita, cujos antepassados haviam chegado à promissora cidade, trazidos pela certeza de uma vida melhor. Lá se fixaram e, com o tempo, envolveram-se nas atividades econômicas locais.


A família de Tera estava aclimatada com as condições urbanas da multirracial Ur. A tradição semita de uma vida dedicada ao campo e rebanhos aos poucos deu lugar à vida sedentária, e esta metamorfose de princípios elementares de visão de mundo atingirá a família nas gerações que seguirão após Tera. Em uma geração, os velhos hábitos semi-nômades voltarão com força, mas ao mesmo tempo, seu neto voltará às práticas urbanas.


Contudo, neste momento, esta família semita está envolta em um comércio muito lucrativo, o comércio (e quem sabe na confecção) de estátuas com finalidades cúlticas (1). E este tipo de negócio era algo muito rentável nos tempos de Tera, especialmente quando se tratava do deus conhecido em acadiano como Sin (ou Nannar, em sumeriano), protetor da cidade, o senhor deus da Lua. A relação estreita entre as divindades locais e a família fica explicita quando 900 anos depois o conquistador Josué faz referência ao fato de seus antepassados serem idólatras em Ur (Js 24.2).


(1) A tradição judaica aponta nesta direção como podemos ver no Midrash  Tanna debe Eliyahu, II.25 e no  Genesis Rabbah. XXXVIII.


O próprio nome de Tera seria um forte indício da ligação deste homem com a divindade Sin, pois na língua daquele semita, seu nome poderia ser traduzido como "Lua". Parece claro qual era a sua orientação religiosa e, mesmo depois, em sua jornada, não sairia de debaixo da sombra desta divindade.


Pouco sabemos das relações familiares de Tera. O relato mais específico nos dá conta que ele teria três filhos homens, e certa incerteza sobre suas filhas. Harã, Naor e Abrão eram os nomes dos varões. Já uma de suas filhas seria Sarai, meia-irmã de Abrão. (Ge 20.12)


Harã, ao que parece, era o primogênito, o escolhido pelos deuses para dar prosseguimento nos negócios da família (2). O pai Tera via em seu filho um futuro grandioso. Como era costume as famílias depositavam sobre o filho mais velho as esperanças de continuidade das suas atividades econômicas. A alegria de Tera se intensifica quando Harã lhe dá a notícia de que um menino, vindo dele, havia chegado ao mundo. A casa se encheu de júbilo e muitos risos. Um menino! Sim, um homem garantiria a sobrevivência do nome da família, pois por tradição, as genealogias sempre só contemplavam a linha masculina. O nome deste rebento de esperança era Ló, o neto de Tera. Esta alegria anularia a infelicidade de Abrão e Sarai não poderem ter filhos.

(2) Se Tera morre aos 205 anos de idade (Ge 11.32), e Abrão tinha 75 anos na época (Ge 12.4), então Abrão nasceu quando Tera tinha 130 anos. O fato de Ge 11.26 registrar que Tera tinha 75 anos quando nasceu Abrão, Naor e Harã Contudo existe uma incerteza se Abrão sai de Harã apenas depois da morte do pai. Os relatos são um tanto quanto confusos neste item, e assumiremos aqui a hipótese de Harã ser o primogênito.


Mas definitivamente não estava destinado a Harã ou a seu filho entrarem para as páginas da História humana. Os olhos divinos estavam voltados para um personagem ainda eclipsado pelo fulgor do primogênito da família. Seu nome, Abrão (3). 

(3) A presença deste nome em arquivos encontrados em Ebla,  uma antiga cidade localizada no norte da atual Síria, fazem com que sua existência se torne mais assegurada historicamente.


O jovem Abrão, entretanto, era diferente do restante da família e de seus co-cidadãos. Desde tenra idade, ainda na adolescência, ele teria inquerido sobre o verdadeiro Deus. Sua atenção não estava voltada para as preocupações deste plano material, para uma vida que buscava suprir para si satisfações. Não, aquele jovem buscava algo mais específico. Sua mente se voltava constantemente para os mistérios da vida e da morte. Seus olhos se elevavam acima dos olhos de outros mortais, buscando uma resposta para questões mais profundas, transcendentes, algo muito superior .


A sua inquietação sobre os porquês o levam a buscar respostas na natureza, sua força, sua harmonia, seu ciclo. Em termos muito práticos, Abrão poderia ser considerado um verdadeiro cientista da Antiguidade, buscando através de observações tirar conclusões que pudessem solucionar os mistérios deste mundo.


As observações atentas daquilo que acontecia ao seu redor, tanto nos ciclos das estações da natureza como no percurso dos astros nos céus, o levaram a questionar a existência de uma inteligência superior que regia todos os movimentos. Deveria haver uma força ou alguém que intervisse para que todas as coisas não entrassem em desordem e caos.


Ele passava noites observando os céus, a movimentação dos astros, planetas e da Lua. Sentava-se isoladamente em algum lugar de sua casa, ou quem sabe mesmo no deserto e elevava seus olhos para o alto, atentamente percebendo a rotação daqueles pontos luminosos pela abóboda celeste. Anotava diligentemente tudo, percebendo que existia uma ordem, um curso fixado para aquelas estrelas lá acima de sua cabeça. Certamente ele não era o primeiro a fazer este tipo de observações astronômicas, mas seu ímpeto em buscar respostas desvinculadas do misticismo e tradições religiosas dos sumérios e caldeus o tornavam único naqueles tempos. E este pioneirismo veio cobrar seu preço.


Segundo Flávio Joséfo, Abrão “era homem muito sensato, prudente e de grande espírito e tão eloquente que podia persuadir sobre o que quisesse”. A habilidade nata de um orador e pensador, aliado ao ímpeto interno para descobrir a verdade sobre assuntos tão profundos quanto o sentido e origem da vida, trouxeram o filho de Tera para a linha de frente de debates acalorados. O seu poder persuasivo nas conversas renderam a ele inimigos dentro das castas religiosas. O que a princípio seriam apenas conversas despreocupadas ao redor da mesa do pai, acabaram por tornar-se verdadeiras discussões seguidas de ameaças à integridade física do jovem inquiridor.


Mas o fruto de seus questionamentos internos o levaram a um patamar mais elevado, aproximando-se de uma hipótese ousada e provocante. Abrão estava chegando à conclusão de que o universo tem sua existência explicada apenas na pessoa de um único Criador. Tudo teve um início, uma causa primária. Este Criador, ainda desconhecido e misterioso, precisava ser descoberto.


“Foi ele quem primeiro ousou dizer que existe um só Deus, que o universo é obra das mãos dEle e que a nossa felicidade deve ser atribuída unica­mente à sua bondade, e não às nossas próprias forças.” (4) - disse Flávio Josefo a este respeito.


(4)  História dos Hebreus, VII


E foi esta ideia básica que entrou em choque com os alicerces da visão de mundo dos habitantes locais. Como poderia um único deus ter criado tudo? Como poderia Ele ser um deus desconhecido? Como buscar esta fonte primária da vida se nem ao menos sabemos de sua existência? Qual o seu nome afinal?


Para Abrão as respostas ainda eram tão obscuras quanto uma caverna profunda. Mas ainda que não tivesse provas concretas sobre a existência desse deus único desconhecido, em momento algum ele deixou de buscá-lo. Era o dever de qualquer um encontrar um meio de contato com este “desconhecido” Criador.


O desgosto, entretanto, que vinha Abrão provocando em sua família era alvo dos comentários de vizinhos e colegas, pois o conflito com seus parentes também acaba por vir a tona em discussões acirradas. Em uma tentativa de dissuadir seu pai de prestar culto aos ídolos, e mesmo abandonar os negócios da família relacionados com aqueles deuses, Abrão provoca a reação inesperada de Tera.


- Pai, que ajuda ou benefício nós temos desses ídolos os quais tu adoras, e diante dos quais tu te curvas? Porque não há nenhum espírito neles, porque eles são formas mudas, e um engano ao coração. Não os adore! Adore ao Deus do céu, que faz a chuva e o orvalho descer sobre a terra e faz tudo sobre a terra, e criou tudo por sua palavra, e todo ser vivente está diante de sua face. Porque tu adoras a coisas que não tem nenhum espírito nelas? Porque elas são trabalhos das mãos (dos homens), e sobre seus ombros tu as carregas, e tu não recebes nenhuma ajuda delas, mas elas são grande motivo de vergonha a aqueles que a fazem, e um engano ao coração daqueles que as adoram. Não as adore!"


Confuso, seu pai apenas lhe responde:
- Eu também sei disso, meu filho, mas o que farei eu das pessoas que me fizeram servir diante deles? Se eu contar-lhes a verdade, eles me matarão; porque a alma deles se une a eles para os adorarem e os honrarem. Mantenha o silêncio, meu filho, senão eles te matarão.(5)

(5) Livro dos Jubileus 12.2-6


Contudo seus irmãos não suportavam as constantes intervenções de Abrão. Ele havia encontrado oposição mesmo entre eles. E enquanto as ameaças contra Abrão aumentavam, outro momento mais perturbador estava por vir.


Certo dia, Tera recebeu uma notícia da qual jamais iria se recuperar. Harã havia morrido, perecendo num incêndio ao tentar salvar os ídolos da casa de seu pai!


Num ataque de zelo, Abrão teria posto fogo nas estátuas de madeiras, e o fogo se alastrou rapidamente. Harã, na tentativa de salvar os ídolos, acaba perecendo. (6)

(6) Livro dos Jubileus, 12.12-14.


O mundo de Tera havia ficado mais sombrio. Seus pensamentos ficaram confusos, desnorteados. A esperança daquele idoso havia desfalecido, o luto tomou conta de toda sua alma e carne.


E no decorrer dos dias, semanas e meses, cada local, cada palavra e cada gesto lembrava seu filho que já não estava mais neste mundo. Restara apenas o túmulo frio e grandioso construído para ser sua última morada.


A sua forte aversão ao local por causa da morte de Harã provoca no patriarca uma medida extrema, que acaba por deixar todos perplexos. Abandonar Ur era a ordem final que saiu de sua boca.


- Não há mais como ficar aqui, temos que partir, ou minha alma se destruirá pela falta que sinto de Harã! - diz ao reunir seus filhos e o neto.


- Mas para aonde iremos? - indaga Naor, ainda surpreso


- Canaã! - afirmou firmemente Tera -. Não há mais futuro para nós aqui. Quem sabe quando os gutti irão chegar às portas de Ur. O norte da planície está um caos por causa destes bárbaros. Não há mais esperança, precisamos ir logo.


- Mas e nossas coisas, nossa vida, parentes e amigos, pai Tera? - sobressaiu-se o jovem Ló na conversa, até então calado.


- Sei o quanto esta cidade representa para você, meu neto. Mas ficar é morrer. Muitos já tem partido para Canaã, não seremos os primeiros. Os caminhos ao longo do Eufrates ainda nos trazem alguma segurança, mas até quando, não podemos saber. chegou a hora. Vamos acompanhar uma caravana que há pouco chegou à Ur em seu retorno para o norte.


Abrão que escutava tudo, abaixa sua cabeça entendendo que seu pai enfim havia ouvido sua suplica para deixarem a cidade que já não era mais favorável a eles. Esta mudança poderia abrir os olhos de sua família para uma nova oportunidade de buscarem em lugares neutros o deus desconhecido, do qual ele tanto falava. Quem sabe até mesmo ele, Abrão, pudesse enfim ter um encontro com aquela divindade anônima.


Sabia que a partida seria um ato difícil para seu sobrinho Ló, que crescia na vida cosmopolita de Ur. Seria ainda mais difícil para Mical e Sarai. Abrão e Naor teriam que convencer suas esposas, que igualmente eram ligadas à cidade, a ter que deixarem para trás sua terra natal e o túmulo do querido Harã, que ficaria para sempre ali sepultado. A tragédia da perda provocara naquela família uma desestruturação tão forte, que precisavam buscar um novo começo de vida, em outro lugar, em Canaã.


Desfazer-se de todos os sonhos, vender seus pertences e fechar seu negócio; arrumar o que restara para levar junto na peregrinação até as novas terras. Tera olha para Ur com sentimentos descontrolados. Passa pela sepultura de seu filho pela última vez nesta vida. Todos sentem a falta de Harã, mas ninguém aparenta mais tristeza que o desesperançoso Tera. Os amigos e parentes vêm se despedir, ainda não entendendo completamente os rumos da decisão de Tera em abandonar Ur. Ninguém ousa dizer uma palavra que pudesse desencadear em Tera uma reação colérica.


E assim partiu a família de Tera, junto com uma caravana que subia para o norte, na direção da Babilônia, e depois mais adiante para os lados das nascentes do Eufrates. Só assim era seguro caminhar pelas estradas de Sinear naqueles tempos de mudanças e incertezas.

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